O dançarino butô e o corpo sem órgãos


“Eu só poderia crer em um deus que soubesse dançar” (ZARATUSTRA)


No começo tudo é estranhamento. Tudo aquilo que escapa ao território do reconhecido, da recognição e parece nos lançar na órbita do caos é repelido
veementemente. Concentramos os nossos esforços em retornar para a identidade, para o conforto do pensamento sedentário e terreno do que nos é habitual. Os limites da experiência corpórea parecem estar muito aquém, e surge a necessidade da pergunta “O que pode um corpo?” Um corpo sem esquematismos, desordenado, com seus limites ultrapassados de maneira violenta. Talvez seja o corpo o ambiente de dominação por excelência, esquadrinhado, submetido às máquinas de domesticação social, modos de poder que rebaixam a vida. Se pelo corpo exerce-se a dominação, é também por ele que podemos promover linhas de fuga que ressaltem a potência do acontecimento, da diferença. Nesse sentido desenvolve-se a dança “butô” de Hijikata e Ohno. O dançarino butô ou “butoca” se projeta no desvelamento das convenções sociais e na experimentação das forças internas que se conectam com as potencialidades do fora. Ele está sempre nu. E tudo que se passa na sua apresentação é sempre um esforço de fugir da captura do poder. Ele procede por movimentos acentrados, ou anti coreográficos, ele desaprendeu a dançar, pelo menos no sentido da dança convencional. Ora rasteja, ora anda, cada movimento parece produzir quase que uma ruptura de seus músculos, porque mexe com todas as suas fibras, partindo de suas entranhas. Um corpo que dança. Faz dançar o pensamento, porque seus movimentos não estão pré-determinados, não tem que ver com repetição de ensaios prévios. O dançarino cruel, o corpo esgotado. Seu organismo quer prender seus deslocamentos, assim se faz a necessidade de se desfazer de seus órgãos, de sua organização interna. Da hierarquia de seus órgãos que procedem por interrupções de fluxos e amarram o corpo, “sob os órgãos ele sente larvas e vermes repugnantes, e a ação de um Deus que o sabota ou estrangula ao organizá-lo”. Aquilo que Artaud definiu como corpo sem órgãos. Artaud odiava os seus órgãos e suas interrupções. Desfazer de sua organização interna é também desfazer-se de todos os apresamentos das convenções sociais, das maquinarias do poder do soberano, de deus, do capital. Isso requer crueldade com o corpo e com o pensamento, não se trata de um estado de liberdade, mas sim de um devir permanente, nunca se é livre, sempre está no processo de afirmação do acontecimento, que libera nosso corpo. Se está sempre em movimento, mas para nada. “O corpo sem órgãos é o improdutivo”. Uma performance “butô” provoca um estranhamento, o expectador é reconduzido pelo imperativo da identidade a apontar que “isso não pode ser dança.” Seus movimentos são incertos, porque não partem de um centro, cada um de seus membros parecem responder a suas próprias potências. Dança do esquizofrênico. A divisão entre interior-exterior se rompeu, “tudo é corpo e corporal. Tudo é mistura de corpo e no corpo, encaixe, penetração”. O “butoca” em seu ápice se libertou das formas do corpo e do pensamento. Devir-outro. O homem é habitado por multidões. Deslizar pelos espaços, diluir os centros de referência do poder, dançar pela imagem fazendo-a tremer. Experimentar o corpo até o deslimite, até que a pergunta se refaça continuamente “O que pode um corpo?”







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Texto: Yargo Marino. E-mail: marinoyargo@gmail.com
Ilustração: Fel Coutinho. E-mail: felcoutinhoart@gmail.com

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