Hermeto Pascoal e o ato de criação

1.Claude Lévi-Strauss em seu livro “O Pensamento Selvagem” começa por distinguir dois modos de conhecer: o pensamento selvagem e o pensamento científico. O que de inovador tem na sua tese é a falta de hierarquização entre os dois modelos, divergindo assim da tradição evolucionista, em que o pensamento selvagem – representado pela magia, pelo mito – seria um estágio inicial, ou para melhor dizer, inferior ao pensamento científico. A questão para Lévi-Strauss então é se existe racionalidade no pensamento selvagem. O que está posto e que antecede a sua proposição é a dominação epistemológica e da racionalidade ocidental frente aos modos de conhecer selvagem. Nesse sentido, sua tese é o desmantelamento dessa concepção, já que os considera modelos coexistentes, e assim demonstra como determinados setores da sociedade ocidental e do pensamento científico se valem de noções do pensamento selvagem. Portanto, o pensamento selvagem não é o pensamento do selvagem. A arte seria um meio termo entre esses dois modos de conhecer, ora se valendo de um, ora de outro. Se o procedimento científico opera uma redução, um processo de síntese, o que acontece no pensamento selvagem é o inverso, é a lógica da expansão e da valorização da diferença. 
2. Uma lógica parece intrinsecamente ligada com a interioridade, enquanto que a outra está em constate conexão com a infinidade do fora. São duas formas também de viver a natureza, uma de dominação, a outra de integração. No modelo de integração e da variação podemos pensar toda a obra de Hermeto Pascoal. Começou muito cedo com suas experimentações, na Lagoa da Canoa, com sua flauta de pífano, tocava para os seus ouvintes (pássaros). Hermeto é o intuitivo, música para ele é sentimento e sensação. Assim os elementos da racionalidade ficam em segundo plano, precisam surgir depois da intuição. Hermeto se faz pela experimentação, um intenso processo de criação. Para ele, tocar é criar. Por isso “perverte” ao tocar músicas de outros artistas, faz tremer as notas na zona indiscernibilidade, ao ponto de que a melodia original quase se perca. Se lança no caos para dele extrair os sons de variação contínua, uma espécie de música-rizoma, que tem em seus acordes inúmeras combinações possíveis. Seus instrumentos não-convencionais, servem para dar conta daquilo que extrapola a música nos seus limites, os instrumentos em Hermeto são somente instrumentos. No regime do bricouler, tudo pode servir.  

3. Não aceita que enquadrem sua música. Quando lhe perguntam qual seu estilo, a resposta é “música universal”. A música universal é em si uma convergência de vários estilos, do clássico ao popular, do jazz ao frevo, não existe preconceito de estilos ou mesmo de instrumentos em sua execução. Não tem vergonha de tocar triângulo e de utilizar o que na mente de muitos é provinciano. Dessa forma se constitui também como música antifascista, porque o outro passa a integrar o universo do possível e realizável. Mas não para ser incorporado e uniformizado, o procedimento é o oposto. Do particular ao universal e vice-versa, no meio de suas músicas mais experimentais ele encontra espaço para o frevo, e todo o cenário da lagoa da Canoa parece estar vivo. Suas partituras não são nem um pouco usuais, o que ele chama de cifragem universal, é cheio de cores, e de elementos que parecem remeter ao natural. Hermeto faz suas músicas através das intensidades, cores, sons, vibrações, operando uma torção dos acordes.  

4. Em uma determinada entrevista ele diz “se me perguntarem que tipo de música eu toco, eu digo música, faça de conta que eu coloquei um quadro na parede, jamais eu explicaria o quadro.” O que está em jogo nessa afirmação é exatamente a questão da produção dos afectos. Já dissemos acima que a música para Hermeto é sentir, não é explicação, ele quer fazer com que os sons se conectem na zona da sensação. Nesse sentido se assemelha a Bacon, se este quer “pintar as sensações”, Hermeto quer tocar as sensações. Ele extrai suas músicas de um plano de composição, pinta cenários através dos sons, e é impossível ouvi-lo sem remeter imediatamente a experiência da natureza. Gosta de tocar para os bichos, ouvir os sons da natureza, fundir-se a eles, numa espécie de devir-animal.  

5. Sua música é o ato de resistência mais puro, só se faz na zona de variabilidade, dessa forma não se deixa capturar, não se enraíza produzindo acomodações. Hermeto é um nômade musical, seu território não é o da dominação, da prática sedentária, é o da experimentação incessante. Muito enganado estão aqueles que denominam suas criações de “hermetismos”. Se hermético é tudo aquilo que se fecha mesmo para o ar, ele é o exato contrário, o procedimento de abertura por excelência, e só pode existir em relação com as potencialidades do fora.

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Texto: Yargo Marino - E-mail: marinoyargo@gmail.com - Twitter: @marinoyargo
Ilustração: Fel Coutinho - E-mail: felcoutinhoart@gmail.com - Twitter: @fel_coutinho


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