Clara Crocodilo: o sombrio e o dissonante.
1. Há uma diferença fundamental entre a
música erudita e a música popular. A música popular tem seu ápice e objetivo na
produção de um texto e em seguida uma melodia que acompanhará o texto, este
tendo proeminência. É bem verdade que alguns compositores da música popular
primeiro chegam à melodia para depois escrever o texto, mas isso funciona como
mero detalhe. A música erudita segue por caminhos diferentes, a questão aqui é
a composição de uma obra, dramaturgia, linhas melódicas, acordes, sistema tonal
ou atonalidade, a escrita é, portanto, de um caráter diferente, e o texto tem
pouca ou nenhuma relevância.
2. Com isso não quero dizer que não
exista uma complementaridade possível entre os dois tipos de composição, e que
em alguma medida a música popular não incorpore elementos da música erudita em
seu processo de produção. Há, pelo contrário, sempre um processo de
incorporação quase que necessário na música popular, pelo menos no contexto
brasileiro. Tom Jobim em suas composições chega ao diálogo e a utilização da
modernidade de Debussy. A incorporação da música erudita da primeira metade de
século XX vai ser construída na figura do Arrigo Barnabé.
3. Clara crocodilo, a música, começa a
ser composta no início da década de 70 e demora quase uma década para ser
lançada no disco que carrega o seu nome no final da mesma década. Uma primeira
inflexão se dá no contexto social brasileiro, anos repressivos da ditadura pós
instauração do AI-5, ou seja, um ambiente de patrulha e perseguição extensiva, em especial as criações artísticas.
4. O belo na composição musical do
ocidente, em alguma medida, sempre esteve ligado a consonância e ao sistema
tonal. A contemporaneidade traz consigo os elementos de uma torção desse
sistema tonal, com o desenvolvimento do atonalismo bem como do dodecafonismo de
Schoenberg. E as influências de Arrigo são, como já dissemos, essa música
atonal, modal e dodecafônica da primeira metade do século XX, e suas figuras
como Béla Bartók, Schoenberg, Stockhausen, entre tantos outros.
5. Arrigo quer incluir na música
popular brasileira esses elementos da composição erudita. Por um lado, as
influências eruditas, por outro os elementos da música popular, o gosto pelas
histórias em quadrinhos e da rotina degradada das cidades. É, dessa forma,
compositor de um estranhamento.
6. Na época de lançamento de clara
crocodilo, seja a música ou o álbum, e ainda hoje, permanece circunscrito a determinados circuitos, não faz parte da grande mídia ou da escuta da massa. Seria, assim, compositor de uma música-menor? Se pela grande mídia
não é reconhecido, ganha prestígio na alta cultura, e forma junto com outros
personagens da música brasileira a Vanguarda Paulistana. É o movimento de
ruptura pós tropicalismo.
7. Em clara crocodilo, a música, o
dodecafonismo ainda não está presente. É uma composição modal, módulos musicais
produzidos de maneira separada que conectados a outros compõe a obra. Em cada
módulo as notas tem uma sequência e em seguida um espelhamento, um tocar de
“trás pra frente”, que produz um incômodo na nossa escuta.
8. Arrigo estava interessado em provocar as dissonâncias, como elementos transgressivos, através do estranhamento, provocar uma deterioração de seus ouvintes. Deterioração de suas concepções, seus dogmas. Nos anos de ditadura todas as composições precisavam lidar com o esforço de fugir da censura, o que necessariamente gerava nos artistas uma sensibilidade para composição. O que de tão bonito tem nas práticas artísticas é que não era uma autocensura e sim novas formas de produção e divulgação. Ao passo que tem características desse período, não é uma obra datada, ultrapassa as dinâmicas vis de seu tempo.
9. Clara Crocodilo é um trava-línguas e
ao mesmo tempo um título que gera apelo. E talvez essa seja a motivação, um
título forte e incômodo. Clara Crocodilo é um personagem cruel, violento, a
dramaturgia e o texto se encarregarão de demonstrar essa crueldade. Crueldade
esta que em suas últimas estrofes parece dar conta da dimensão sombria da mente
humana. Será então que Clara Crocodilo é um personagem exemplar que concentra a
maldade humana ou seria Clara uma dimensão sombria que se esconde em todos nós?
10. Além de perversa é também subversiva, “não vou morrer nas mãos de um rato”, de “inimigo público número um”, abre um pequeno espaço no discurso para demonstrar alguém que não se submeterá ao jugo do poder estabelecido. O que nos remete diretamente a caracterização de sujeitos perigosos por parte das figuras de poder, e que, em última instância, são aqueles críticos ao status quo, inimigos da ordem imposta a força.
11. O texto é chapado, com palavras
“simples” que fogem da dimensão especulativa da poesia, um texto pouco
“intelectual”. Os elementos simbólicos estão presentes, mas como histórias em
quadrinhos, na superfície, assim a crítica aparece.
12. A complementaridade entre música e texto se
faz muito interessante, é um exemplar amálgama musical, da cultura popular e
erudita. Na última linha do texto, uma citação a Baudelaire, “ouvinte
hipócrita, semelhante meu, meu irmão”. Arrigo é um leitor voraz de poesia.
13. Seguimos o labirinto que clara
crocodilo constrói na tentativa de especular sobre essa música incompreendida e
essencial da música brasileira. A música parece percorrer um fio condutor
deixado por Rimbaud, “um longo, imenso, e pensado desregramento de todos os
sentidos”, ouvir clara crocodilo é se lançar no universo da dissonância, de uma
maneira que seja difícil de lá regressar.
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